De onde vem aquela sensação incontrolável de ‘quero beber mais’? A ciência sabe

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Já sabemos que, segundo cientistas da Universidade de Montreal, no Canadá, o consumo de maconha é mais prejudicial para o cérebro de adolescentes do que a ingestão de bebida alcoólica.

Mas isso não quer dizer que o álcool não faça mal ao cérebro.

Pesquisadores da Universidade de Brown, nos EUA, revelaram que o álcool sequestra os mecanismos de formação das memórias e muda a expressão das proteínas nos neurônios, criando aquela incontrolável sensação de “quero beber mais” a despeito de eventuais memórias ruins associadas à bebida.

A pesquisa, publicada na revista Neuron, alerta que uns poucos drinques em uma noite são suficientes para alterar a formação das memórias em nível molecular.

O alto riso de recaídas é um dos maiores desafios na luta contra o alcoolismo, apesar dos avanços significativos nesta área. Foi por isso que os cientistas da Universidade de Brown decidiram estudar o cérebro das mosca-da-fruta, cujos sinais de formação de memórias de repulsa e recompensa são muito parecidos aos dos humanos.

Nosso o cérebro tem mecanismos para nos “premiar” por determinadas ações e nos punir por atos não tão bons. Desta forma, nos faz sentir bem ou mal de acordo com cada ação. Este mecanismo foi desenvolvido ao longo de nossa evolução – mas as drogas bagunçaram a coisa toda.

“Todas as drogas de abuso – álcool, cocaína, metanfetamina – têm efeitos colaterais adversos. Elas fazem com que as pessoas sintam náuseas, tenham ressacas. Então, por que as achamos tão boas? Por que nos lembramos das sensações boas (que elas provocam) e não das ruins? Meu grupo está tentando entender, em nível molecular, o que as drogas provocam nas memórias e por que elas causam esse desejo incontrolável”, explica Karla Kaun, a principal autora do estudo.

Para ajudar na recuperação de alcoólatras e viciados em outras drogas, os pesquisadores querem entender as mudanças moleculares ocorridas no momento em que esse desejo se forma e, então, reduzir a duração ou a intensidade dessas memórias positivas.

É aqui que entram as moscas-da-fruta.

Com apenas 3 mm de tamanho, esta espécie possui apenas cem mil neurônios (os seres humanos possuem cerca de cem bilhões). Isso fez com que este inseto seja o modelo perfeito de organismo para que a equipe de Kaun, através de ferramentas genéticas, pesquisasse os mecanismos envolvidos na formação de boas memórias em relação ao álcool.

Eles selecionaram e desativaram alguns genes das moscas, ao mesmo tempo em que ensinaram os insetos onde conseguir álcool com facilidade, permitindo, assim, que eles observassem as proteínas envolvidas no mecanismo de recompensa.

A primeira peça da cadeia molecular que envolve o desenvolvimento do embrião, o desenvolvimento do cérebro e as funções do cérebro adulto de humanos e outros animais é uma proteína chamada Notch. Quando ela é desativada, deflagra o desligamento de várias outras na sequência.

Uma delas é a bem conhecida nossa, a dopamina. O gene receptor de dopamina é o responsável por classificar uma memória como agradável ou desagradável. É exatamente aí que o álcool vai agir.

Não porque o álcool “liga” ou “desliga” o gene receptor. Ele nem mesmo vai aumentar ou diminuir a quantidade de proteína produzida. O que de fato ocorre é que o álcool altera levemente a versão da proteína produzida.

De acordo com Kaun, se o mecanismo das moscas “funcionar da mesma forma em seres humanos, uma taça de vinho é o suficiente para ativar o mecanismo, mas ele retorna ao normal dentro de uma hora. Depois de três taças, no entanto, com um intervalo de uma hora entre cada uma, o mecanismo ativado só retorna ao normal depois de 24h. Nós achamos que essa persistência é o que provavelmente provoca as mudanças nas expressões do gene no circuito da memória”, explicou ela no material de divulgação do estudo.

Curiosamente, não é a primeira vez que a mosca-da-fruta chama a atenção de cientistas. Como já mostramos aqui, pesquisadores israelenses já estudaram o vício deste mesmo inseto no prazer sexual para, com esta resposta, controlar a dependência química nos seres humanos.

 

Fonte: Estadão Ciência