Permitir e impedir

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Dar limites é estabelecer um caminho entre dois campos. Criar uma fronteira. Sulcar a terra num ponto escolhido, e poder dizer o que é “aqui” e o que é “lá”. É um traçado de perspectivas, entre aquilo que se permite e aquilo que se impede. Permitir deriva de permittere, ou deixar seguir, deixar passar. E impedir deriva de impedir-inpes, ou amarrar os pés. O primeiro pode tornar-se relapso, o segundo pode revestir-se de profunda perversão: é a diferença entre “deixar passar” porque cansei, porque já não me interessa, e o “deixar passar” porque avalio estar na hora de determinada experiência ter espaço. A diferença entre impedir porque quero exercer o meu domínio sobre o outro, independente do que o outro sinta, queira ou precise, e o impedir para salvaguardar a integridade desse outro. Ao falar de limites, falamos de formação de caráter, e o que permitimos e impedimos, e que faz parte da essência de nosso caráter, depende das experiências de limite que tivermos guardadas de nossa formação.

A catalogação de transtornos mentais está repleta de situações (como o transtorno de personalidade narcisista, entre tantos outros) que demandam cada vez mais a nossa atenção, assim como a nossa recusa à naturalização de determinados comportamentos que lhes são característicos (seja o egocentrismo, seja a compulsão por preenchimento das próprias lacunas sem percepção das necessidades alheias). A falta (ou excesso) de estabelecimento de limites é referenciada como um dos pontos chaves desses transtornos. Saber estabelecer fronteiras equilibradas e positivas, para si mesmo e para os outros, é um traço de saúde mental importante.

Estabelecer limites demanda uma avaliação correta de seu impacto. Digo “não” a meu filho sabendo em que pode impactar esse não. Quanto mais consciência tiver do que provoca o meu impedimento (ou a minha permissão), maior facilidade terei em estabelecer limites. Regras e normas decorrem de limites, e precisam não só ser claras, como coerentes, congruentes e consistentes.

Por outro lado, a definição de um limite é uma situação cultural, ligada ao lugar e à época em que se vive. O que era um limite na década de 50, não é um limite em 2015. O que é um limite na savana sudanesa, não é um limite para um peruano de Cusco. Assim como diferentes culturas pedem diferentes formas de arar e sulcar a terra, também as nossas culturas pedem que limites se estabeleçam de formas diferentes. Porém, o estabelecimento de limites, e o respeito às fases de desenvolvimento, são aspectos que nos unem, assim como pode unir-nos também o mútuo conhecimento. Quanto mais conhecemos sobre a raça humana, mais humanos nos tornamos, e os traços culturais, que são os do espírito, são aqueles que nos fazem humanizar a vida.

O importante é exercitar o nosso olhar observador (que demanda des-preconceito ativo), e começar a perceber o que determinado limite, colocado de determinada forma e num determinado tempo, provoca no plantio como um todo, da semeadura à colheita. É trabalho lento, mas fundamental. Significa abrir mão do “faço assim porque todos fazem”, do “faço assim porque assim se faz na minha família”, do “faço assim porque foi assim que aprendi”. É preciso aprender a pensar sem amarras, conseguindo ir além do que já se sabe para englobar o que os outros sabem. É preciso investigar, e conseguir não apenas sentir o que é certo, mas também pensar o que é certo. É preciso que consigamos passar da percepção e do desejo instintivos a uma forma mais humana de vida – uma forma onde o nosso sentir seja acompanhado pelo pensamento, instrumento que nos distancia da animalização crescente. Em vez de reagir a um impulso, que entendemos como irrefreável, e que é pouco afeito a considerar o seu efeito sobre o outro, agir a partir do pensamento livre e autônomo, forjado a partir de uma personalidade atenta àquilo que o mundo lhe devolve como espelho.

Estabelecer limites na infância, e limites conscientes e coerentes, cria a base para uma personalidade consciente de sua própria importância, apta ao exercício da empatia, com expectativas corretas a respeito de si mesmo e a percepção de que o mundo não existe para lhe oferecer o que lhe foi negado, ocultado ou roubado. Só assim é possível interpretar com limpidez o que o espelho do mundo devolve.

Pensemos na mais tenra infância. Traços fundamentais de nosso caráter são forjados ou alimentados nesse tempo. A nossa relação posterior com o mundo carregará essas marcas, e nem sempre conseguiremos cavar em nós mesmos para resgatar-nos de vivências negativas.

A Sociedade Brasileira de Pediatria vem, já há algum tempo, recomendando a livre demanda na amamentação – ou seja, que se ofereça o peito ao bebê sempre que ele queira, pelo tempo que ele queira. Os argumentos que tentam invalidar essa premissa são muitos: “é preciso disciplinar o bebê”, “é preciso que ele se acostume”, “não podemos estar sempre à disposição”, “é bom que ele chore um pouco pra não ficar mimado”…  A livre demanda apresenta vantagens sobre a marcação rígida de horários específicos para as mamadas. O bebê aprende a regular a própria saciedade, prevenindo obesidade futura, perde menos peso, os problemas mamários diminuem e o vínculo entre mãe e bebê é reforçado.

Deixar um bebê chorando à espera de uma hora limitada de mamada é a sua primeira experiência de abandono e de solidão. Os bebês não têm filtros nem mediadores internos que os habilitem a lidar com a frustração e o medo. Esses filtros são construídos com as experiências da primeira infância, e a confiança, o vínculo e a certeza palpável de ser amado são, de todas, as mais primordiais. É preciso confiar e abrir-se antes de aprender a proteger-se. O estabelecimento do limite é o que permite que uma frequência ou outra de sentimento aconteça: limito, em horários rígidos, ou limito dentro daquilo que o bebê solicita? Quem comanda a minha vida? O relógio? A necessidade do outro?

E por que isso nos interessa, neste campo da dependência química? Porque o medo de solidão e de abandono é uma das suas portas de entrada. Segundo Friena Brandão, no seu artigo O que o caráter tem a ver com a dependência química, “traços orais insatisfeitos são encontrados em todos os tipos de caráter que buscam as drogas como portas para a busca de alguma coisa, seja ela de que tipo for”. A autora fala de “algo perdido há muito tempo, talvez no primeiro período de amamentação.” E referencia que “quanto maior a quantidade de angústia, mais abusivo será o uso da droga”. Cabe a nós, educadores, diminuir a quantidade de angústia que provocamos naqueles que nos são confiados, sejam filhos, alunos, vizinhos ou amigos. E que, em meio ao turbilhão que é a vida, encontremos tempo para olhar para dentro e perceber se, do lado de fora, é a mesma imagem que contracena com o resto da humanidade.

 

ana cptANA VIEIRA PEREIRA é mestre e doutora em Literatura Comparada pela USP. Atualmente dedica-se ao ensino e à pesquisa da escrita dentro do âmbito da criação artística. Coordena o espaço Quinta Palavra, em Botucatu, e é assessora pedagógica da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, e da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, em Botucatu. É autora de, entre outros, Do ventre ao berço: o parto em casa, Mistache Malabona e O dono do castelo.