O Império contra-ataca

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Esta é a sequência – e também a última parte – da nossa série sobre marketing e publicidade usados de forma enganosa, exagerando as qualidades e a eficácia de um produto, mesmo quando ele faz mal à saúde – como o caso das drogas, do álcool e do cigarro, foco deste artigo.

O tabaco é uma droga lícita e legalmente reconhecida e, portanto, produzida de modo seguro. Muitas famílias vivem de sua produção, e a diminuição do consumo de produtos derivados do tabaco atinge também a questão econômica dessas famílias. As primeiras lavouras de tabaco no mundo surgiram nos últimos anos do século XVI. O cigarro é um processo que, no Brasil, envolve 2,4 milhões de pessoas. Mescla trabalho artesanal a modernas fábricas, além de incluir uma intrincada logística de distribuição. Entre 2004 e 2007, a área cultivada no Sul do país ficou 22,3% menor, ocasionando perdas financeiras significativas.

Em 2015, 192 países aprovaram um tratado da Organização Mundial da Saúde (OMS), ligada à ONU (Organização das Nações Unidas), que prevê controle sobre o comércio de cigarro, limites à propaganda, aumento de impostos e divulgação dos malefícios que ele causa. No Brasil, as regras acrescentam pouco ao que já existe: a propaganda foi banida, o imposto é alto, os maços trazem alertas de saúde e a nomenclatura “light”, ideal para capturar ex-fumantes, foi proibida.

Em setembro do ano passado, a mesma OMS, em um duro comunicado, alertou que “a indústria do tabaco e seus grupos têm enganado o público sobre os riscos associados a outros produtos de tabaco. Isso inclui a promoção de produtos do chamado ‘tabaco light’ como alternativa a parar de fumar, enquanto eles tinham ciência de que esses produtos não eram menos prejudiciais à saúde”.

As proibições – e mesmo as campanhas contra o fumo – não são recentes na história do homem moderno. No início do século 17, na Inglaterra, o rei Jaime I classificou o hábito de fumar como repulsivo. Na Alemanha de Adolf Hitler, durante o período denominado “Terceiro Reich”, a proibição do fumo atingia a população feminina daquele país.

E também não é de hoje que a indústria tabagista busca uma alternativa diante de uma sociedade que luta contra o tabagismo. O caminho, claro, é o marketing “de produtos de tabaco de maneira que enganosamente sugerem que alguns são menos prejudiciais do que outros”, denuncia a OMS em seu comunicado. Naquela ocasião, a entidade anunciou sua recusa em se tornar parceira da Foundation for a Smoke-Free World (Fundação para um Mundo sem Cigarro), financiada pela Philip Morris – a maior fabricante de cigarros do mundo –, e convidava toda a comunidade internacional a fazer o mesmo.

A tal fundação “independente” e sem fins lucrativos foi criada para “acelerar os esforços globais pela redução dos impactos à saúde e mortes em razão do cigarro, com o objetivo de eliminá-lo definitivamente do mundo”. Porém, segundo a Philip Morris, um futuro sem fumaça “não significa construir um futuro sem tabaco”.

“Historicamente a Philip Morris se opõe a todas as políticas de saúde que visam ao combate ao cigarro”, afirmou a OMS. Já mostramos, por exemplo, que a fabricante também flertou com o negócio da maconha no final da década de 1960 e início da de 1970. E provavelmente ainda flerta hoje!

Foi com desconfiança, portanto, que o mercado recebeu, no início deste ano (2018),  o comunicado (imagem à esquerda) da fabricante dona da marca Marlboro, L&M e Dallas, afirmando que abandonará em breve o negócio de cigarros. O comunicado foi feito por meio de anúncios publicitários na Inglaterra, em uma iniciativa que faz parte de uma estratégia global da empresa.

“Nossa resolução do nosso Ano Novo. Estamos tentando desistir de cigarros.” “Todo ano, muitos fumantes desistem de fumar. Agora é nossa vez”, afirma o comunicado da Philip Morris.

Para cumprir esta sua “resolução de Ano Novo”, a empresa assumiu uma série de compromissos, como lançar um site com informações para quem deseja parar de fumar, além de apoiar ações governamentais em locais com grande população de fumantes para que o público possa abrir mão do “produto prejudicial”.

Em sua resolução, a Philip Morris também informa que pretende incentivar a substituição dos cigarros tradicionais pelos eletrônicos, que são ‘menos nocivos’ e por isso uma ‘opção melhor’ ao consumidor.

E foi aí que a porca torceu o rabo e a OMS torceu o nariz.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a Philip Morris afirma que há mais de 10 anos vem trabalhando com produtos que oferecem “menos risco a saúde”, como produtos de tabaco aquecido, avaliados como melhores do que cigarros. Um destes produtos, como mostramos neste artigo, é o IQOS.

“Muitas pessoas acham que é a nicotina que torna o cigarro prejudicial”, diz a Philip Morris. “O processo de queima que libera os aromas do tabaco e a nicotina (princípio ativo da planta que gera dependência) também produz mais de 6 mil químicos, dos quais 1% foi identificado como causa para doenças associadas ao ato de fumar.”

Curiosamente, é a própria indústria do tabaco que desmente a Philip Morris e admite: “sempre haverá algum risco”. São palavras de James Murphy, diretor da Unidade de Fundamentação de Risco Reduzido da British American Tobacco, com sede em Londres. A multinacional é controladora, por exemplo, da brasileira Souza Cruz.

Como já vimos aqui, uma pesquisa comprovou que o uso desses dispositivos contendo nicotina pode causar um endurecimento das artérias, assim como aumentar os batimentos cardíacos e da pressão arterial.

A Philip Morris reagiu: “estamos dizendo que esses produtos são saudáveis? Não. O que estamos dizendo é que esses produtos são alternativas melhores ao cigarro”.

Isso não convenceu a OMS, que condenou a PMI (Philip Morris International) e todos os fabricantes de cigarro a serem impedidos de anunciar seus produtos como métodos para abandono do tabagismo até que as empresas forneçam evidências científicas que apoiem a afirmação.

Já em 2015 a Organização atestou que a maioria dos produtos não tinha sido testada cientificamente e advertiu que a nicotina presente nos aparelhos pode contribuir para doenças cardiovasculares, neurodegeneração e crescimento de tumores. Como conclusão, a OMS determinou que os e-cigs representam ameaças particularmente graves para os adolescentes.

Naquele mesmo ano, a indústria de cigarros eletrônicos ou vaporizadores movimentou US$ 8 bilhões no mundo todo, sendo os EUA os donos da maior parte do mercado (43%). Há estimativas de que as vendas desse tipo de produto alternativo ao cigarro cresça ainda cerca de 16%, até 2022.

A importação e venda de cigarros eletrônicos é proibida no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas, ainda por meio de sua assessoria de imprensa, a Philip Morris informa que a Anvisa deverá regulamentar já nas próximas semanas estes novos produtos através da revisão da RDC 90, normalizando todos os produtos de tabaco. O Império contra-ataca. E sempre no intuito de manter a chama acesa, literalmente.

 

Fontes: AD News, Estadão e Veja